Relato de prova: 26 horas de Half Mision Brasil 2015!
Antes de começar, quero ressaltar que este post está atrasado 2 anos, por minha única e exclusiva culpa. Então vamos lá!
A Half Mision Brasil, realizada na cidade de Passa Quatro-MG, é uma franquia da corrida La Mision realizada na Argentina há 10 anos. Utiliza a Serra Fina na divisa entre Minas Gerais e São Paulo como percurso para uma prova de muita beleza e dificuldade.
Tanto a beleza quanto a dificuldade ocorrem pelo terreno acidentado e sequencia de montanhas que a trilha percorre. A largada da prova deste ano ocorreu, assim como nos dois anos anteriores, na praça central de Passa Quatro às 09 da manhã com um ligeiro atraso. O clima entre os competidores era de muita descontração e companheirismo, típico das provas de corrida de montanha. Grandes companheiros de treino e de outras provas estavam juntos para esta aventura.
Mochilas carregadas com bastante água, comida, agasalhos, primeiros socorros, capacetes e lanternas dão o tom da extensão da prova e das muitas horas que passaríamos desfrutando das belezas da Mantiqueira. Lado a lado, corredores das provas de 80 e 40 quilômetros iniciaram a corrida nas ruas de paralelepípedo da cidade até chegar a uma estrada de terra onde uma subida de 15k nos levaria ao primeiro posto de controle e início da trilha. Junto ao Refúgio Serra Fina, fizemos o reabastecimento de água, tivemos o número informado ao PC(Posto de Controle) e iniciamos por uma trilha íngreme e escorregadia em direção ao Capim Amarelo. Já tínhamos vencido uns 500m de desnível positivo até o refúgio e viriam mais 1000m até o alto do Capim Amarelo (2450m), em uma sequência de trechos de pedra e mato rasteiro alternados por trechos de mata fechada, sempre com muita subida.
A vista neste trecho estava muito bonita, com montanhas escarpadas e um mar de nuvens que escondia a cidade de Passa Quatro e os vales no entorno. Para cima, as montanhas estavam iluminadas pelo sol da tarde e o vento esfriava o corpo a cada parada para descanso. No Capim Amarelo (outro PC) a prova seguiu um longo trecho por cristas e cumes de outras montanhas até chegar ao ponto mais alto da prova, a Pedra da Mina(2750m). Um pouco antes da subida final, uma parada para abastecer de água todos os reservatórios, pois o próximo ponto apenas num lugar conhecido como Paiolinho, umas 6 a 8 horas a frente. A chegada ao cume foi por uma longa rampa de capim baixo e pedras iluminadas pelo sol da tarde, mas que nem por isso dispensavam o corta-vento. Lá em cima informação ao PC, uma checada no horário(17:00), fotos e uma parada rápida pra não esfriar.
O cume da Pedra da Mina estava belíssimo. Abaixo de nós um mar de nuvens e o sol no poente criando uma aura alaranjada no horizonte e um vento frio dava mostras de como seria a descida da montanha e a noite que caía rapidamente. Sem muita demora começo a descida, que ocorreu no trecho mais difícil ainda com luz do dia, felizmente. Muita descida em matacões de pedra, pedras soltas e um zigue zague constante para percorrer alguns poucos quilômetros e quase 1200 metros de desnível. Logo veio um trecho com mato alto onde a iluminação da headlamp rebatia no capim e ofuscava a visão sem dar muita chance de divisar a trilha que seguia. Os tropeções e quedas eram constantes. Por sorte este trecho já não era tão íngreme e estas escorregadas tinham poucas consequências. A medida que a altitude ia caindo a vegetação mudava. Os campos de altitude deram lugar ao capim alto que já cedia espaço à uma mata mais densa com árvores altas. A umidade era maior também, mas estávamos protegidos do vento. Volta e meia o vapor da respiração e da transpiração criavam imagens interessantes a luz da lanterna.
Logo avistei um acampamento, que era um novo Posto de Controle onde um membro do staff sentado em uma rede em frente a uma fogueira nos perguntava o número e indicava o caminho e a distância para o Paiolinho. Os 2 quilômetros indicados pelo rapaz da organização (que eram 3,5km na verdade) foram percorridos num ritmo muito bom em uma trilha fechada na mata, mas onde a sinalização com fitas reflexivas nas árvores e pedras davam muita segurança para andar. Bastava levantar a cabeça com a lanterna presa ao capacete que se viam duas ou três fitas adiante que indicavam o caminho.
A chegada ao Paiolinho (1600m), por volta das 21:00 representou uma vitória parcial. Estava vencido o pior trecho de montanha da prova! Agora uma longa descida em estrada de terra nos levaria muito perto da cidade para então iniciar uma longa subida de volta para as últimas montanhas da prova. Um chocolate quente dado pela organização, uns 15 minutos de descanso e arrumação de mochila davam novo fôlego para continuar. Nesta descida, em meio a pequenas fazendas e chácaras, uma festa junina onde alguns casais dançavam no chão de terra batida e as crianças brincavam em volta da fogueira trouxeram um ar bucólico para aquelas 12 horas de esforço até então. Perto de mim outros competidores desciam caminhando em ritmo constante, mas sem pressa. Curtir o caminho é quase tão importante quanto chegar e era o que eu procurava fazer ao máximo. A estrada de terra reduzia o nível de atenção necessária para caminhar o que não evitou um tombo meu em uma curva, onde escorreguei em umas pedras soltas e caí espetacularmente. Quem sofreu foi meu bastão de caminhada que já tinha entortado num escorregão no meio da tarde e agora quebrou sem qualquer chance de conserto.
À meia noite, após desembocar da estrada de terra em uns 200 metros de asfalto cheguei a sede do Ibama(1000 m.a.n.m.) na entrada da Floresta Nacional de Passa Quatro. Nova parada para checar equipamentos, comer, jogar lixo fora, tirar comida da mochila e passar para os bolsos da bermuda. Aproveitei também para jogar fora o bastão de caminhada quebrado e coloquei uma calça, prevendo que a subida da montanha de madrugada seria bem fria. Do Ibama segue uma nova estrada de terra montanha acima e em uma bifurcação avisto dois competidores incertos sobre que destino tomar, pois haviam marcações da prova para ambos os lados. De um deles veio a informação que o caminho da esquerda levava de volta ao Ibama. Então seguimos pelo caminho da direita que também parecia o mais lógico dada a posição da montanha que iríamos subir. Da estrada entramos por um trecho de trilha em uma espécie de pasto até voltar para a estrada uns 15 minutos mais a frente, onde um grupo em uma camionete junto a uma fogueira nos indicava o caminho a seguir. E o caminho era morro acima pela estrada de terra. Esta subida foi extenuante, lenta e cansativa. O sono já começava a dar sinais e como não havia dificuldades em termos de caminho, era apenas caminhar, subir e subir. Isto tornava aquela marcha bastante tediosa e tive a impressão de que um competidor ao meu lado estava caminhando dormindo!
Perto de 3 horas da madrugada a chegada ao PC Casa de Pedra(1700m). Era o fim da estrada, um local para reabastecer, descansar um pouco e começar o trecho de trilha para subir o Tijuco Preto, montanha que chega a 2350m de altitude. Agora a subida ficava ainda mais lenta, mas a dificuldade do caminho e a necessidade constante de levantar a cabeça para procurar com a lanterna pelas próximas marcações espantavam o tédio do trecho anterior. Eu estava bem mais desperto, mas sentia o cansaço chegar. Então atenção total no esquema de alimentação e hidratação. Não era hora para descuidar daquilo que eu tinha cumprido tão bem até então.
Às 04:46 alcancei o cume do Tijuco Preto(2350m) e por um erro meu de interpretação do percurso julguei que logo começaria a descida para o Refúgio Serra Fina e daí para o final da prova 15 quilômetros adiante. Acontece que o caminho demarcado continuava em um sobe e desce de várias pequenas montanhas, passava um cume descia pela montanha e logo começava a subir outra. Por vezes, avistava as luzes da cidade de Passa Quatro à minha direita mas a trilha continuava para frente. Comecei a pensar que poderia ter errado em algum ponto, mas não cogitava em voltar. A marcação estava ali, então o que tinha que fazer era segui-la. Não havia qualquer pessoa para perguntar. Aliás, cerca de 80% da prova eu percorri sozinho, alcançava e era alcançado por outros competidores mas por pouco tempo andávamos juntos. Pouco antes de amanhecer avistei a luz de dois corredores montanha acima cerca de uns 10 minutos a minha frente. “Ufa! Se estou no caminho errado, não estou sozinho”. Pensei! Alcancei-os e trocamos algumas poucas informações sobre o caminho. A conclusão era uma só: Se tem fitas de marcação, é por aqui. Vamos em frente! Passamos a andar juntos. Uma gaúcha de Porto Alegre e um fluminense de Araruama.
De fato, lá pelas 07:00 encontramos o staff em uma barraca que pedia nossos números e informava que a partir dali o caminho seguia o percurso que havíamos feito na manhã anterior, agora em sentido contrário, rumo ao Refúgio Serra Fina. Uma descida íngreme com alguns trechos auxiliados por cordas com nós para segurança e muitos mais tombos e escorregões. Em um desses o bastão de caminhada que restou entortou um pouco na ponta. Tudo bem, agora o foco é terminar o trecho de trilha e completar a prova! Desço junto com o rapaz de Araruama, que se chama Gabriel e conversamos um pouco sobre provas, trilhas e a beleza do lugar.
No Refúgio Serra Fina, tive uma sensação de alívio e preocupação. Alívio por ter concluído o trecho de montanha bem. Estava inteiro, disposto e muito feliz. Porém, preocupado com o tempo limite dado pela organização. Não tinha mais certeza se eram 26, 27 ou 28 horas. O sono e o cansaço já não ajudavam a memória. Eram 9:00 da manhã, portanto tinha 24 horas de prova e ainda faltavam 15 quilômetros para concluir. Bom, o que não tem remédio, remediado está! Não iria desistir, isso não! O negócio era terminar a prova. Se concluísse após o prazo limite, paciência.
No começo da descida pela estrada de terra uma pequena bolha no pé que eu já tinha detectado lá atrás no Ibama deu o ar da graça e virou uma baita bolha perto dos dedos do pé direito. Que dor! Parei, deu um jeito nela e continuei a caminhar. No início doía, mas logo não sentia mais nada.
Então comecei a reconhecer alguns lugares que tinha passado na subida e me animava cada vez mais. O tempo estava ótimo e o sol começava a esquentar. Já tinha tirado o corta vento e logo tirei a segunda pele que usei como segunda pele desde o início da prova.
A chegada ao cruzamento com o asfalto foi um alívio. Sabia que só faltavam uns 2 km para completar. Encontro com um sujeito que, do carro, medalha no peito, pergunta se estou bem e se preciso de água. Agradeço, pois ainda tinha bastante comigo. Nos cumprimentamos mutuamente e sigo o caminho. Deste ponto, apareceu sinal no celular e liguei para minha esposa que estava na chegada me esperando desde as 08:00.
Nas ruas de paralelepípedo da cidade de Passa Quatro fui me animando. Conversei rapidamente com dois rapazes que perguntaram como foi a corrida. “Foi ótima”, disse. Comecei a trotar pois já estava ansioso para chegar, queria completar antes das 27 horas e o relógio mostrava que dava tempo. Uma garotinha acompanhada da mãe me pergunta timidamente se eu tinha mesmo andado 80 quilômetros, disse que sim mas logo corrigi: Daqui a pouco em completo os 80 quilômetros, falta pouco!
Quando passei por uma pequena ponte que fica na reta final da prova já estava correndo. Não sei se sentia as pernas ou pés, mas não importava! Queria chegar, completar. Estava muito feliz e emocionado como em poucas vezes estive. A cada competidor que aparecia na reta um grupo que estava próximo a linha de chegada começava a aplaudir e parabenizar os corredores. Foi emocionante! Aplaudi-os de volta, pois acho este incentivo muito gratificante em provas de rua e de montanha.
Com 26h15’ cruzei a linha e levei alguns segundos para achar minha esposa que ansiosamente me esperava. Um beijo de parabéns foi a melhor recompensa que poderia ter por aquela prova sensacional. Uma pessoa que estava próxima pediu para nos fotografar e logo passei a ela a máquina que carreguei na prova e que ainda estava cheia de lama! Não faz mal. Fotos tiradas, medalha no peito e uma sensação incrível de “Missão Cumprida”. Afinal, como diz o slogan da prova: “Onde chegar é ganhar”! Perguntei sobre nossos amigos e soube que todos chegaram bem, cada um a seu tempo. Foi com orgulho que soube que todos os nossos amigos de Curitiba completaram a prova. Ao todo foram 66 dentre 120 que largaram!
Neste momento, todas as sensações se juntam. Todos os treinos, a preparação cuidadosa montada pela Vanessa Cabrini a quem eu agradeço muito, todos os companheiros de treinos e corridas. O incentivo de toda a equipe a BPM Assessoria Esportiva. Tudo é lembrado como parte de uma grande jornada que se encerra na linha de chegada, mas que foi construída desde o começo do ano com muito volume de treinos, treinos em subida, intervalados, alimentação e provas preparatórias.
Voltei para Curitiba com a sensação de dever cumprido. Muito cansaço e gratidão por todos que me acompanharam e ajudaram neste objetivo. Que venham os próximos desafios!